Uma máquina administrativa inchada, lenta e ineficiente, sob o comando de uma elite inculta, atrasada, corrupta, perdulária, avessa ao trabalho e sem pudores de avançar sobre o patrimônio público. Assim era a corte de D. João VI, no Rio, há 200 anos. O celebrado livro "1808", do jornalista Laurentino Gomes, (São Paulo, Editora Planeta, 2007), ajuda muito a entender o Brasil de hoje.
D. João, como se sabe, deixou Portugal para escapar das guerras napoleônicas e mudou-se para o Brasil com uma corte de 10 mil a 15 mil pessoas, entre nobres, conselheiros reais, militares, juízes, advogados, médicos e seus familiares, e ainda padres, camareiros e cozinheiros. Seguiram em mais de 40 embarcações, sob proteção da Marinha britânica. Um pouco antes disso, em 1800, nos Estados Unidos, o presidente John Adams transferia cerca de 1 mil funcionários para a nova capital da República, Washington. "Ou seja, a corte portuguesa no Brasil era entre 10 e 15 vezes mais gorda do que a máquina burocrática americana nessa época. E todos dependiam do erário real ou esperavam do príncipe regente algum benefício em troca do ‘sacrifício’ da viagem", observou Laurentino Gomes. Ele cita o historiador inglês John Armitage, que passou parte da juventude no Brasil: "Um enxame de aventureiros, necessitados e sem princípios, acompanhou a família real".
A corte consumia por dia 90 dúzias de ovos e mais de 500 aves, entre frangos, galinhas, pombos e perus. Para garantir o abastecimento, a chamada Ucharia Real, o setor responsável pela despensa da nobreza, determinou que todas as galinhas à venda no Rio fossem compradas prioritariamente por agentes do rei. E o que acontecia? Funcionários da despensa real revendiam galinhas no mercado paralelo, com preço mais alto, naturalmente, para a revolta dos moradores da cidade.A corte portuguesa, naquela época, já era considerada atrasada para os padrões europeus. A Inglaterra, por exemplo, vivia a Revolução Industrial. Adam Smith escreveu "A Riqueza das Nações" em 1776. A França fez sua revolução em 1789. Mas, no Brasil de D. João VI, o trabalho era considerado algo indigno. Para isso havia os escravos, uma tragédia nacional.
Estima-se que, ao longo de 300 anos, entre os séculos 16 e 19, cerca de 10 milhões de escravos tenham sido vendidos para as Américas. Isso é três vezes a população do Espírito Santo. E quase a metade, ou 40%, veio para o Brasil. "Todos os que conseguem adquirir uma meia dúzia de escravos passam a viver na mais completa ociosidade - explorando os rendimentos do trabalho dos negros - e a caminhar pela rua solenemente, com grande empáfia", escreveu o inglês James Tuckey, em 1803. Um negro adulto podia ser comprado por 40 libras, ou o equivalente hoje a R$ 10 mil, metade de um carro popular. Os monges do Convento de São Bento, então o mais rico do país, possuíam quatro engenhos de açúcar, tocados por 1,2 mil escravos. E o que é mais estranho: os próprios negros alforriados que conseguiam acumular bens tornavam-se proprietários de escravos.
A presença maciça dos negros nas ruas era considerada uma grande fonte de tensão social. "Os escravos são sempre inimigos naturais de seus senhores: eles são contidos pela força e pela violência", afirmava José Antônio Miranda, autor de uma análise de 1821, sobre a situação política do Brasil e de Portugal. A escravidão só seria finalmente extinta cerca de 70 anos depois, pela bisneta de D. João, a princesa Isabel. Mas é evidente que ela deixou marcas ainda hoje não cicatrizadas por completo. Duzentos anos em história pode ser muito pouco. Diz a lenda que, nos anos 60, durante a Guerra Fria, perguntaram ao líder chinês Chu En-Lai, ministro de Mao Tsé-Tung, o que ele pensava sobre os ideais da Revolução Francesa, de liberdade, igualdade e fraternidade. E ele teria respondido, sem ironia: "É cedo demais para dizer". A China, como se sabe, tem mais de 4 mil anos de história.
Esse histórico de corrupção e indolência ajuda a entender o Brasil de hoje, mas claro que isso não significa que precisamos ficar presos ao passado, ou que não seja possível agora haver ética na política.
André Hees é jornalista ahees@redegazeta.com.br
Artigo veiculado no jornal A Gazeta 26 de agosto de 2009 . http://gazetaonline.globo.com/
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